16 de junho de 2007

Um conto de terror carnavalesco



Era um final de tarde de uma quarta-feira de cinzas e Rita, mais uma vez, não brincara o carnaval naquele ano. De família religiosa, Rita, desde pequena, era proibida de participar da festa, mas acompanhava, com certo interesse, tudo que acontecia, através da janela de sua casa no bairro carioca de Santa Cruz. Naquele dia, ela decidiu se aventurar um pouco e se sentou à beira da porta para ver os foliões passarem.

A moça estava distraída com uma pequena odalisca que passava, quando ouviu alguns gritos e assobios vindos do alto da rua. Um grupo de clóvis vinha fazendo uma grande algazarra com seus apitos e vestidos com suas fantasias e máscaras coloridas. Ao se aproximarem, Rita nota que há um desenho de caveira estampado na capa de cada um dos componentes. Apesar da máscara, ela percebe que um deles a olha fixamente com olhos brilhantes e penetrantes. Um arrepio atravessa seu corpo inteiro. O mascarado chama a atenção dos companheiros e aponta para Rita. Eles vêm dançando em sua direção e de repente a moça se viu no meio de uma grande roda. O grupo abre e fecha a roda e seus movimentos levantam a poeira do chão de terra batida. A agitação faz Rita se sentir mal e desmaiar, e ela nem percebe quando um dos clóvis a esconde por baixo da fantasia e a tira da roda.

Já é noite e a moça lentamente abre os olhos e percebe que está numa espécie de gruta escura. Rita sente uma pequena dor na boca e ao passar os dedos nos lábios sente um forte cheiro de vinho. De repente, ela ouve os passos de alguém se aproximando. Apavorada, a moça vê o clóvis e seus olhos ainda mais brilhantes por trás da máscara. Ela solta um grito, que logo é abafado pela luva áspera que cobre as mãos enormes do mascarado. Mesmo fraca, ela tenta correr, mas descobre que está acorrentada a dois ganchos presos ao chão. O mascarado dá uma gargalhada e calmamente começa a acender algumas velas vermelhas que iluminam a escuridão da caverna. Ao fundo da gruta, uma espécie de altar com algumas cabeças de caveira, pedaços de fantasias e acima uma imagem de Dionísio, o deus dos prazeres.

O mascarado solta as correntes e deixa a moça totalmente nua. Ele carrega Rita até o altar e a amarra na mesa. Ele abre a boca de Rita à força e derrama lentamente uma taça de vinho em seus lábios. O mascarado se ajoelha diante do altar e começa a pronunciar algumas palavras desconexas mas que pareciam uma cantiga de carnaval. Entorpecida pelo vinho e pela música Rita começa a rir e a se debater como se seu corpo tivesse sido apossado por alguma coisa do mal. O mascarado, então, desamarra a moça que a este momento já está completamente transformada. Ele se despe e ao retirar sua máscara revela uma face toda deformada. Ele puxa Rita contra seu corpo, lhe dá um beijo apaixonado e diz: “Enfim te encontrei, minha colombina”.

8 de junho de 2007

O que é que a baiana tem?


No fim do século XIX e nos primeiros anos do século XX, num momento em que o Rio de Janeiro passou por uma série de transformações na estrutura urbana e o samba se fixou na cidade, a presença das chamadas "tias" baianas foi da maior importância.

O fluxo de imigrantes baianos aumentou consideravelmente com a Abolição da Escravatura, pois estes vinham para cá em busca de melhores condições de vida. Entretanto, não foi apenas por ser a capital da República que o Rio foi procurado, mas também porque os negros baianos já identificavam a cidade com as suas origens. Começaram a se fixar na zona portuária da cidade conhecida por “Pequena África”, compreendida pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo.

A reforma urbana elaborada pelo prefeito Pereira Passos, colocou abaixo as construções na zona portuária e imediações, obrigando a “baianada” a se deslocarem para a Cidade Nova, se concentrando nas imediações das ruas Visconde de Itaúna, Senador Eusébio, Marquês de Sapucaí e Barão de São Félix e do largo de São Francisco.

É nesse cenário que surge a figura das “tias baianas”, verdadeiras guardiãs da cultura popular que elas mesmas transportaram de Salvador para o Rio de Janeiro. Eram sacerdotisas de cultos e ritos herdados de ancestrais africanos, festeiras, mestras na arte do samba, versadoras, improvisadoras, cantadeiras, passistas e cozinheiras absolutas, mantendo por dias os fogões acesos e os quitutes quentinhos para os que vinham "brincar o samba" em seus casarões, em festanças que chegavam a durar uma semana.

As tias baianas eram líderes comunitárias e se agrupavam em torno de pequenas corporações de trabalho, como o comércio de doces e salgados, costuras e aluguel de roupas carnavalescas. Nas esquinas, praças, largos, becos, estação de trem, porta das gafieiras, elas eram presença obrigatória, já fazendo parte do cotidiano carioca. Nas festas tradicionais das igrejas, como as da Penha e Glória, também compareciam com as suas barracas de comida típica.

O “ponto” da tia Tereza, situado no largo de São Francisco, era local de encontro de políticos e jornalistas de renome. No seu tabuleiro, funcionava um “verdadeiro restaurante” com cardápio específico para cada dia da semana. Segundo um dos seus freqüentadores, o jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, foi graças à intervenção de clientes influentes que se impediu que o “restaurante” da baiana fosse posto abaixo pela polícia. O jornalista ainda observa que era ao redor dos tabuleiros que se sabia das coisas: lá que se construía toda uma rede de relações que informava, amparava, divertia e ampliava os contatos.

No morro da Mangueira, as tias Tomásia e Fé já tinham os seus próprios blocos carnavalescos, onde saíam os seus `filhos de santo', com elas à frente, sempre vestidas de baiana”. Na casa de Tia Bibiana, era realizado o concurso dos primeiros ranchos. As tias eram reverenciadas, e os ranchos pediam sua proteção e bênção antes de sair para a folia. Esse compromisso era tão sério que os ranchos que não o cumprissem à risca acabavam desconsiderados: “Era como se não tivessem saído no Carnaval”, segundo depoimento de Donga (Jota Efegê, 1982).

Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, era casada com João Batista da Silva, um negro também baiano que havia cursado medicina em Salvador e ocupava bons empregos no Rio. A famosa casa de Tia Ciata, era um local de encontros, música, dança, cura, conversas, criatividade e trabalho. Para fugir da perseguição da polícia que não permitia o samba porque era considerado coisa de marginal, usava-se o disfarce do choro na sala da frente e sambava-se à vontade no quintal. Diz-se, inclusive, que o primeiro samba, “Pelo Telefone” de Donga e Mauro de Almeida, foi feito em sua casa em 1916.

Entre os freqüentadores da casa estavam músicos como Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô, Caninha e Heitor dos Prazeres e alguns jornalistas e intelectuais, como João do Rio, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e o assíduo cronista Vagalume. A casa da Tia Ciata denota bem a questão da circularidade cultural, atraindo elementos da classe média carioca. Geralmente eram carnavalescos da Zona Sul que iam encomendar fantasias e acabavam ficando para o pagode.

Podemos concluir que através do samba, do Carnaval e da culinária, a cultura negra foi ganhando espaços no conjunto da sociedade, fazendo-se aceita. Os códigos culturais começaram a se entrecruzar, mesmo que de forma precária. E, geralmente, o centro irradiador dessa cultura era a casa das tias como Tia Tereza, Fé, Tomásia, Bibiana, Ciata, Preseiliana, Veridiana, Josefa Rica e tantas outras mais.